sábado, 27 de setembro de 2008

Conto inacabado sobre Fulano

derivado do post anterior, "Bastidores de um conto"

Procurando a interrogação, Fulano tentava conservar na cabeça a idéia que havia tido para usar após a pergunta de seu personagem. Acontece que a velha máquina de escrever tinha metade das teclas com suas inscrições apagadas, atribuindo a Fulano a árdua tarefa de ter na cabeça não apenas o enredo da história, como também a posição de cada caractere no teclado. Escritor medíocre que era, o era também para encontrar as teclas certas e precisava freqüentemente prender outra folha para reescrever tudo. Ao invés da interrogação, esbarrou num absurdo sinal de adição que nada adicionava à sua história. Seu personagem ficaria sem resposta mais uma vez.

Arrancou o papel da máquina, conservando-o ao lado enquanto copiava tudo na nova e, esperava ele, definitiva folha. Durante todo o procedimento, Fulano contemplava o teclado a imaginar onde raios estaria a maldita interrogação. Às vezes imaginava se não lhe valeria mais a pena ter todos os botões do teclado com suas respectivas inscrições mesmo que sequer funcionassem, mas sabia que isso não passava de um devaneio convidado à mesa pelo crescente cansaço.

Chegando ao ponto culminante, teve medo de chamar pela interrogação e ser atendido pelo ponto-e-vírgula ou pelo cedilha e continuou a apenas contemplar aquele teclado mudo, como se esperar o bastante fosse ajudar a gravar os caracteres ausentes na velha máquina. Outro devaneio, sabia, e sabia também que todos os teclados eram mesmo mudos. O que lhe incomodava naquele era que as teclas não davam satisfação alguma, privando-lhe do controle total sobre a situação. Se sentia pequeno e mecânico, um mero instrumento que aquela máquina usava para criar vida esporadicamente. Olhando ao redor, percebeu a casa onde morava tão velha quanto a máquina de escrever e, com seus barulhos e estalos, mais viva à medida que o tempo passava. Pensou que ia morrer um dia e que a casa e a máquina provavelmente ainda existiriam, assim como as fotos amareladas que guardava debaixo da cama ficavam mais expressivas quanto mais amarelas e, o vento nas janelas, mais melódico quanto menos conservadas estas estivessem.

Evitando encarar a máquina, se deu conta de que qualquer monumento com cerca de 150 anos de existência ou tartaruga em crise de meia-idade estava na Terra havia mais tempo do que todo ser humano vivo e que nenhuma única pessoa testemunhou boa parte da História contada, ensinada, escrita, debatida, estudada, lida, aprendida. Depois que todos os seres humanos que existiam em séculos passados foram extintos e substituídos por outros, todos os passos, bocejos, beijos, dores, mentiras e outros detalhes de igual minúcia foram sepultados para sempre junto a seus respectivos autores e o mesmo aconteceria a ele e a qualquer um que conhecia ou já ouvira falar. Seriam todos como teclas mudas.

Fulano se sentiu só em nome de todas as pessoas que existiam juntas naquele momento. Pegou uma caneta e desenhou à mão uma interrogação no fim do último parágrafo que escrevera. Seu personagem ficaria melhor sem resposta


sábado, 20 de setembro de 2008

Bastidores de um conto

Fechou o livro e abriu o laptop. Repousou este sobre o seu colo enquanto se acomodava melhor na poltrona pouco confortável no canto da sala e tirava os sapatos usando os próprios pés. Ao lembrar que não bebia nada desde que havia iniciado a leitura do livro, ficou com sede e levantou novamente para buscar um copo, de água ou do que encontrasse ainda dentro do prazo de validade na geladeira. Atravessou o corredor até a cozinha e voltou ao canto da sala com um refrigerante e a determinação que se consegue após os rituais destinados à protelação de atividades futuras.

A atividade consistia em escrever um conto. Sobre o quê, ainda era um mistério. Costumava lapidar seus temas à medida que as linhas iam se acumulando e acotovelando umas às outras, como algum tipo de auto-psicografia, mas a única coisa que o refletia naquele momento era aquela ostensiva e ameaçadora tela branca, e timidamente. Na noite anterior, havia tido um pesadelo envolvendo folhas em branco que teimavam em continuar assim por mais que ele tentasse escrever ou até jogar baldes inteiros de tinta sobre elas. No fim, as folhas o descartavam jogando seu corpo amassado ao lixo.

Lembrou do episódio e, por um instante, pensou em realizar um ato tresloucado de vingança escrevendo qualquer bobagem de duas linhas para sairsemsalvar, manifestação máxima de insatisfação literária que aos poucos vinha substituindo o então clássico amassaejogafora que as folhas assassinas adotaram às avessas no sonho. No entanto, acabou desistindo ao lembrar que além de uma folha e uma tela serem suportes distintos, esta continuava em branco, o que o impedia de elaborar um tema relevante para seu conto.

Por falta de uma idéia melhor e excesso de tempo à disposição, acabou decidindo, ao invés de recorrer às auto-psicografias costumeiras, falar sobre si próprio escrevendo. Enquanto tomava os últimos goles do refrigerante, pensou em romantizar um pouco seu protagonista e imprimir-lhe trejeitos, manias e outras sutilezas. O mesmo faria com o laptop, que seria interpretado por uma velha máquina de escrever, tão surrada que algumas de suas teclas, já sem nada impresso sobre elas, obrigariam o escritor a por vezes ter que adivinhar suas funções.

Começou a escrever "Procurando a interrogação, Fulano tentava conservar na cabeça a idéia que havia tido para usar após a pergunta de seu personagem. Acontece que a velha máquina de escrever tinha metade das teclas com suas inscrições apagadas, atribuindo a Fulano a árdua tarefa de ter na cabeça não apenas o enredo da história, como também a posição de cada caractere no teclado. Escritor medíocre que era, o era também para encontrar as teclas certas e precisava freqüentemente prender outra folha para reescrever tudo. Ao invés da interrogação, esbarrou num absurdo sinal de adição que nada adicionava à sua história. Seu personagem ficaria sem resposta mais uma vez".

Escritor medíocre que também era, foi só quando tentou transcrever a tal pergunta que atentou para a necessidade de um novo tema, dessa vez para o tal Fulano. Afinal, escrever sobre si mesmo escrevendo sobre o quê? A pergunta agora era para ele, o autor, e se projetava diante dele como dois espelhos posicionados um de frente para o outro, trocando reflexos indefinidamente. Já seu reflexo continuava a encará-lo através da tela quase em branco, com apenas aquele início de parágrafo flutuando no alto de sua testa, e parecia bastante cansado. Começou a divagar sobre para onde os reflexos vão quando não os estamos vendo, justo quando na tela tudo o que se refletia era o topo de sua cabeça despejada sobre o teclado.

De repente, ele a visualizou sendo mastigada pelo laptop, que abria e fechava sozinho, tal qual uma boca, usando as teclas como dentes. Entre o sangue e os pedaços de seu cérebro, podia ver o monitor completamente em branco fazendo as vezes de céu da boca.

Saiusemsalvar.