segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Edredon azul amassado

Sentado ao lado da cama, procuro um espaço para mim junto ao edredon que, azul e amassado ao longo dela, move-se vez por outra revelando numa das extremidades três unhas de pé pintadas. De que cor, não posso saber. O escuro do quarto me esconde quase tantos segredos quanto o azul do edredon, do qual só tenho conhecimento por já tê-lo visto antes à luz do dia.

Não que não tenha visto também as unhas antes, ou mesmo o pé inteiro, mas lembrar das suas cores seria tão absurdo quanto lembrar do brinco que ela tirou antes de se esconder lá embaixo. Sei que elas não são azuis. Nem amassadas. Apenas se ocupam em amassar aquele azul ainda mais, revelando na extremidade oposta alguns fios do cabelo castanho cujo corte jamais notei. Ou foi uma pintura? Não lembro ao certo, mas parecem mesmo um tanto amassados agora... Minha vista viaja pelos contornos do edredon, se demorando mais que o normal em cada parada para trapacear a escuridão. Se eu fosse um pintor, copiaria cada ausência de contraste que vejo agora, cada falta de detalhe e cada defeito dessa cena, incluindo os meus próprios, já que sequer saberia que cores usar. Mas ao invés de um pintor sem tintas, me contento em ser um escritor sem palavras.

Quando o dia amanhecer, continuarei sem lembrar de que cor são aquelas unhas ou perceber o corte do cabelo, pois lembro melhor da cor e da textura do edredon azul amassado que no escuro continua a ser azul e amassado. Dela recordo apenas da respiração lenta e pausada, do brilho que os olhos emanam mesmo quando fechados, dos pés se esfregando um no outro a qualquer barulhinho ou antes de cada mudança de posição, das batidas do seu coração ecoando pelo colchão quando deitada de bruços e do progressivo distanciamento entre sua cabeça e o travesseiro ao longo da noite.

Ao acordar, ela vai trocar de lado e puxar o azul e já bastante amassado edredon em sua direção e cobrir o rosto até se conformar com a idéia de levantar. A respiração vai acelerar, os olhos vão brilhar mesmo ainda sendo esfregados, os pés vão tocar hesitantes o chão frio e as batidas do seu coração vão ecoar em mim durante um abraço de bom dia. Não é por não ter tintas ou palavras que deixo de ter sentimentos e nem ela, mesmo coberta, deixa de ser linda.


sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Dor

Ela vem de fora, sentimento forasteiro que invade e saqueia cada pedaço e pensamento. Pode estar em mim, mas não é minha; pode me possuir, mas não a possuo. E por ser de outro lugar, causa estranhamento no meu quando se hospeda sem fazer questão de hospitalidade. Faço as vezes de anfitrião sem rosto: não estou para ela, nem existo para ela! É ao anular minha face e minha presença que começamos a nos misturar até formarmos um híbrido. Sei que está ali, mas não a encontro para poder mostrar a saída. E em algum lugar no meio desse labirinto está eu, seja eu quem for ou quem era.

Se descubro quem a levou até mim, levo de volta e juntos tentamos deixá-la no meio do caminho. Mas se há uma distância que torna esse caminho demasiado tortuoso, sequer a devolvo e sou capaz de guardá-la comigo como uma dor de estimação, por um mero acesso de medo de perdê-la.

A dor é um trote sentimental; e eu, remetente e destinatário. É um fogo cruzado diante do espelho. Não é o oposto do prazer, e sim sua causa e conseqüência. Mas repito: nunca será só minha a não ser se causada por mim e para mim.

sábado, 27 de setembro de 2008

Conto inacabado sobre Fulano

derivado do post anterior, "Bastidores de um conto"

Procurando a interrogação, Fulano tentava conservar na cabeça a idéia que havia tido para usar após a pergunta de seu personagem. Acontece que a velha máquina de escrever tinha metade das teclas com suas inscrições apagadas, atribuindo a Fulano a árdua tarefa de ter na cabeça não apenas o enredo da história, como também a posição de cada caractere no teclado. Escritor medíocre que era, o era também para encontrar as teclas certas e precisava freqüentemente prender outra folha para reescrever tudo. Ao invés da interrogação, esbarrou num absurdo sinal de adição que nada adicionava à sua história. Seu personagem ficaria sem resposta mais uma vez.

Arrancou o papel da máquina, conservando-o ao lado enquanto copiava tudo na nova e, esperava ele, definitiva folha. Durante todo o procedimento, Fulano contemplava o teclado a imaginar onde raios estaria a maldita interrogação. Às vezes imaginava se não lhe valeria mais a pena ter todos os botões do teclado com suas respectivas inscrições mesmo que sequer funcionassem, mas sabia que isso não passava de um devaneio convidado à mesa pelo crescente cansaço.

Chegando ao ponto culminante, teve medo de chamar pela interrogação e ser atendido pelo ponto-e-vírgula ou pelo cedilha e continuou a apenas contemplar aquele teclado mudo, como se esperar o bastante fosse ajudar a gravar os caracteres ausentes na velha máquina. Outro devaneio, sabia, e sabia também que todos os teclados eram mesmo mudos. O que lhe incomodava naquele era que as teclas não davam satisfação alguma, privando-lhe do controle total sobre a situação. Se sentia pequeno e mecânico, um mero instrumento que aquela máquina usava para criar vida esporadicamente. Olhando ao redor, percebeu a casa onde morava tão velha quanto a máquina de escrever e, com seus barulhos e estalos, mais viva à medida que o tempo passava. Pensou que ia morrer um dia e que a casa e a máquina provavelmente ainda existiriam, assim como as fotos amareladas que guardava debaixo da cama ficavam mais expressivas quanto mais amarelas e, o vento nas janelas, mais melódico quanto menos conservadas estas estivessem.

Evitando encarar a máquina, se deu conta de que qualquer monumento com cerca de 150 anos de existência ou tartaruga em crise de meia-idade estava na Terra havia mais tempo do que todo ser humano vivo e que nenhuma única pessoa testemunhou boa parte da História contada, ensinada, escrita, debatida, estudada, lida, aprendida. Depois que todos os seres humanos que existiam em séculos passados foram extintos e substituídos por outros, todos os passos, bocejos, beijos, dores, mentiras e outros detalhes de igual minúcia foram sepultados para sempre junto a seus respectivos autores e o mesmo aconteceria a ele e a qualquer um que conhecia ou já ouvira falar. Seriam todos como teclas mudas.

Fulano se sentiu só em nome de todas as pessoas que existiam juntas naquele momento. Pegou uma caneta e desenhou à mão uma interrogação no fim do último parágrafo que escrevera. Seu personagem ficaria melhor sem resposta


sábado, 20 de setembro de 2008

Bastidores de um conto

Fechou o livro e abriu o laptop. Repousou este sobre o seu colo enquanto se acomodava melhor na poltrona pouco confortável no canto da sala e tirava os sapatos usando os próprios pés. Ao lembrar que não bebia nada desde que havia iniciado a leitura do livro, ficou com sede e levantou novamente para buscar um copo, de água ou do que encontrasse ainda dentro do prazo de validade na geladeira. Atravessou o corredor até a cozinha e voltou ao canto da sala com um refrigerante e a determinação que se consegue após os rituais destinados à protelação de atividades futuras.

A atividade consistia em escrever um conto. Sobre o quê, ainda era um mistério. Costumava lapidar seus temas à medida que as linhas iam se acumulando e acotovelando umas às outras, como algum tipo de auto-psicografia, mas a única coisa que o refletia naquele momento era aquela ostensiva e ameaçadora tela branca, e timidamente. Na noite anterior, havia tido um pesadelo envolvendo folhas em branco que teimavam em continuar assim por mais que ele tentasse escrever ou até jogar baldes inteiros de tinta sobre elas. No fim, as folhas o descartavam jogando seu corpo amassado ao lixo.

Lembrou do episódio e, por um instante, pensou em realizar um ato tresloucado de vingança escrevendo qualquer bobagem de duas linhas para sairsemsalvar, manifestação máxima de insatisfação literária que aos poucos vinha substituindo o então clássico amassaejogafora que as folhas assassinas adotaram às avessas no sonho. No entanto, acabou desistindo ao lembrar que além de uma folha e uma tela serem suportes distintos, esta continuava em branco, o que o impedia de elaborar um tema relevante para seu conto.

Por falta de uma idéia melhor e excesso de tempo à disposição, acabou decidindo, ao invés de recorrer às auto-psicografias costumeiras, falar sobre si próprio escrevendo. Enquanto tomava os últimos goles do refrigerante, pensou em romantizar um pouco seu protagonista e imprimir-lhe trejeitos, manias e outras sutilezas. O mesmo faria com o laptop, que seria interpretado por uma velha máquina de escrever, tão surrada que algumas de suas teclas, já sem nada impresso sobre elas, obrigariam o escritor a por vezes ter que adivinhar suas funções.

Começou a escrever "Procurando a interrogação, Fulano tentava conservar na cabeça a idéia que havia tido para usar após a pergunta de seu personagem. Acontece que a velha máquina de escrever tinha metade das teclas com suas inscrições apagadas, atribuindo a Fulano a árdua tarefa de ter na cabeça não apenas o enredo da história, como também a posição de cada caractere no teclado. Escritor medíocre que era, o era também para encontrar as teclas certas e precisava freqüentemente prender outra folha para reescrever tudo. Ao invés da interrogação, esbarrou num absurdo sinal de adição que nada adicionava à sua história. Seu personagem ficaria sem resposta mais uma vez".

Escritor medíocre que também era, foi só quando tentou transcrever a tal pergunta que atentou para a necessidade de um novo tema, dessa vez para o tal Fulano. Afinal, escrever sobre si mesmo escrevendo sobre o quê? A pergunta agora era para ele, o autor, e se projetava diante dele como dois espelhos posicionados um de frente para o outro, trocando reflexos indefinidamente. Já seu reflexo continuava a encará-lo através da tela quase em branco, com apenas aquele início de parágrafo flutuando no alto de sua testa, e parecia bastante cansado. Começou a divagar sobre para onde os reflexos vão quando não os estamos vendo, justo quando na tela tudo o que se refletia era o topo de sua cabeça despejada sobre o teclado.

De repente, ele a visualizou sendo mastigada pelo laptop, que abria e fechava sozinho, tal qual uma boca, usando as teclas como dentes. Entre o sangue e os pedaços de seu cérebro, podia ver o monitor completamente em branco fazendo as vezes de céu da boca.

Saiusemsalvar.


sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Passeio

"Você acredita em vida após a morte?", perguntou o franzino lá do canto após um longo período de silêncio entre os dois. "Vou lhe dizer no que acredito", respondeu o outro, "pra mim essa história de vida após a morte é a maior conversa fiada. Eu acredito em morte após a vida e pronto". O franzino mudou de posição, não por se sentir incomodado, mas porque obtivera a resposta que esperava para engatar o assunto. Sorriu brevemente, como de praxe fazia nessas situações, e perguntou outra vez "E o que você acha que acontece depois disso tudo aqui? Vamos simplesmente deixar de existir, pensar, sentir?".

Agora era o outro que conseguia não a resposta, mas a pergunta que queria, e a respondeu explicando "Você só refuta essa idéia porque não é capaz de imaginar como seria a sensação de não existir. Tudo bem, eu também não sou, mas aceito que, o que quer que exista ou não além de nós, é algo que pelo visto foi feito para não ser percebido, se é que foi feito algum dia. Por isso lhe digo: já que não sabe mesmo qual será o destino, apenas aproveite o passeio!". "Então sou só um curioso?", o franzino ironizou. "E dos piores", emendou o outro.

"Não é só curiosidade nem é só minha. Você estaria mentindo se dissesse que também não sente a existência de um projeto maior. É uma tendência do ser humano especular sobre essas coisas, eu sei, mas o que seria da alegria não fosse nossa tendência a procurá-la? Nunca a vi nem toquei, mas sou capaz de sentir e até de nomear isso, assim como você também é". "Então sou só um mentiroso?", o outro parodiou. "E dos melhores", retrucou o franzino.

"Eu não lembro do dia em que nasci. E, se é para fazer como você e recorrer às adivinhações, acho que ninguém lembra do dia da morte também, sabe porque? Porque assim como quem existe não lembra de não ter existido antes, quem não existe não pode lembrar de alguma vez já ter existido". Quieto e pensativo, o franzino deixou de lado seus breves sorrisos para entender o complexo raciocínio que o outro expusera. A escuridão dominava o ambiente, mas nada além do que estavam acostumados. Frente a frente, os dois por vezes trocavam empurrões, disputando o minúsculo espaço que ora os unia, ora os separava.

"Veja o mundo", sugeriu o franzino. "Você não o acha pequeno e limitado demais?". "Não sei, é o maior em que já estive", o outro respondeu. "Deve haver algo além sim, um deus que foi capaz de entender que precisamos de alimento, ar, água e que nos fornece tudo isso", o franzino quase não conseguiu terminar a frase, à quase interrupção do outro: "E porquê Deus tem que ser bom? Aliás, não precisa sequer ser um ser! E se não houvesse deus nenhum, mas só uma força, uma lei física qualquer que determina o funcionamento de todas as outras?". "Aí ela seria Deus". A resposta do franzino deu ao outro o que pensar. Sentiu que Deus lhe havia posto em xeque, pois existia mesmo que não existisse! "Uma proeza", pensou.

"Não há nada indiferente à vista que não seja íntimo à alma. Só ela é capaz de ultrapassar o horizonte e nos contar daquilo que nunca vimos", o franzino explicou. De repente, ambos concordaram que o mundo era mesmo pequeno e limitado. O desconforto era quase insuportável, os dois debatiam-se com violência. O mundo tal qual conheciam desmoronava e por alguma razão, se sentiam responsáveis por tudo aquilo. Logo, o desconforto evoluiu para uma dor como nunca sentiram antes. O céu se rasgava e, da abertura, o branco mais intenso já visto saltava até eles como que para abduzi-los. Fecharam os olhos.

Aos poucos, a dor virava dormência e esta dava lugar a um desamparo crescente. Não havia mais nada além do clarão em suas vistas. Ao mesmo tempo, uma sensação de liberdade lhes dava a impressão de estarem flutuando de ponta-cabeça, embora sós, separados um do outro e de tudo o que conheciam. Estavam mais sós do que nenhuma vez estiveram até aquele dia que o outro havia pouco profetizara que jamais iria lembrar. A vontade de chorar era imensa e assim o fizeram. Choraram ambos, a plenos pulmões, já envoltos em panos limpos após a retirada do cordão umbilical.


sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A luz que demora anos pra chegar

"Mãe, olha pro céu", disse o garoto enquanto se sentava no encosto do velho banco de madeira da praça. Já pressentindo a repreensão por seus modos feios, que veio na forma de um breve "Senta direito", ele não chegou sequer a ensaiar apoiar os pés no assento, conforme planejara. "Tá, mas olha pro céu", insistiu mesmo destituído de seu conforto incompreendido.

Ao perceber a cabeça de sua mãe inclinada, continuou. "Tem um monte, né? De estrela? Hoje ouvi o cara da televisão dizer que cada uma sai do seu planeta e vem se encontrar com as outras no céu, é verdade?". Ainda com a cabeça para trás, a mãe reage ao depoimento do cara da televisão com um demorado "É mesmo?". "É mesmo. Algumas vêm de pertinho, outras de longe. Por isso que aquela ali ainda tá bem brilhante, ela não precisou viajar muito. Mas tá vendo aquela outra, ali embaixo? Tá tão cansada da viagem que nem brilha direito mais. Com certeza veio de muito, muito longe".

"E o que é que elas vêm fazer no céu?", a mãe perguntou enquanto baixava novamente a cabeça para apoiá-la sobre uma das mãos, agora olhando para o filho. "Ele não disse, mas acho que elas vão porque acham legal lá. E porque podem. Eu queria ir também, mas não posso porque não sei voar ainda", o garoto explicou enquanto saltava para mais uma tentativa de sentar no encosto e pisar no assento. Dessa vez, a reação da mãe se limitou a levantar novamente a cabeça, mas com o simples objetivo de acompanhar seu filho com o olhar. "Mas no planeta delas não tem céu?", perguntou. "Não, mãe! Os planetas ficam no céu, senão eles ficariam onde? Debaixo da terra?", o filho respondeu impaciente.

"É, é. tem razão!", confessou a mãe com o desdém respeitoso que se dispensa à ingenuidade amparada na lógica. E arriscou: "Mas essas estrelas devem gostar mesmo é de mato. Tem sempre um montão no céu das cidadezinhas do interior, já viu?". "Já, e acho que é porque o trânsito pra lá é menos engarrafado. Aí só algumas vêm pro céu da cidade grande".

As sobrancelhas exageradamente franzidas da mãe combinadas com a boca entortada que formava uma cova no canto do rosto compuseram o cenário perfeito para seu "Faz sentido" proferido durante um também exagerado gesto de aquiescência. E perguntou: "E o Sol também é uma estrela. O cara da televisão te contou isso também?".

"Contou que é a maior de todas elas. E de tão grande que é, só pode ir pro céu sozinho, senão engarrafa tudo até no interior!"


domingo, 10 de agosto de 2008

Enquanto minha guitarra lamenta gentilmente

Ele olha para todos os que estão ali e para ninguém ao mesmo tempo. A massa composta por corpos, roupas e rostos que se mexem sem sair do lugar na arquibancada do anfiteatro parece um ninguém gigante alimentado por vários alguéns. "Quanto mais indivíduos, menos individualidade", ele pensou enquanto desviava o olhar para os próprios olhos e percebia que aquilo sequer era necessário, afinal, era em meio à mesma arquibancada que eles também estavam e talvez por isso parecesse impossível contemplá-los com tanta facilidade.

Ainda sem conseguir tirar os olhos da arquibancada, ouviu as primeiras notas do solo de guitarra que vinha do palco: distante dos corpos, roupas e rostos, mas presente em cada movimento, cada tecido e cada expressão ali ausente. Cerrou os olhos que há pouco não conseguia distinguir em meio à multidão e assim pôde encontrá-los, fechados por fora, mas abertos por e para dentro. O sentimento de dormência sumia a cada compasso e cada nota era um solo por si só, suas individualidades agrupadas num alguém-ninguém imponente que varria do chão e do céu todo e qualquer vestígio de vaidade.

Ninguém o avisou que seus olhos estavam fechados e talvez por isso assim os manteve. Não sabia como, mas o controle lhe escapava com as notas que desfilavam sem fim e com o lamento de cada uma delas ao se despedir. Sonhou por um segundo como quem passa dias acordado e se apegou ao lamento, quis que não acabasse, quis comprá-lo, vendê-lo, vender-se para perpetuar aquela sensação como algo seu. Sonhou acordado e, por isso, acordou sonhando. Sentiu o mundo girar, o tempo soprar e os cabelos crescerem.

Foi o susto que o fez abrir as cortinas dos olhos. O solo havia caído no improviso e o ninguém gigante já não era mais um coro. Se tornara vulnerável aos novos lamentos, cada vez mais insistentes e por vezes até desafinados, os erros mais assíduos à medida que o solo crescia. "A vida é improvisada. É preciso improvisar e é preciso errar e a única certeza que preciso é a de que estou aprendendo com cada erro", pensou, apesar de não ser ele o homem empunhando a guitarra que dava luz aos lamentos. "Sem a possibilidade de erro, o improviso morre e com ele morrem todas as outras. Nada vou aprender com a precisão dos acertos, pois preciso mesmo é o improviso".

Ao notar que os corpos, roupas e rostos se emancipavam do ninguém gigante, lembrou que as notas fizeram o mesmo com o solo. Mais uma vez não sabia como, mas em algum momento pessoas e notas divergiram de suas origens e, pervertidas, se misturaram na mesma causa libertária. Agora a nota era um solo, o corpo uma dança, a roupa uma pele, e, o rosto, um sentimento. Tudo havia se invertido, mas no meio disso tudo a música ainda fazia sentido.

E enquanto a guitarra articula gentilmente seus últimos e comovidos lamentos, ele olha para si e para todos os que estão ali ao mesmo tempo.

Inspirado na letra de 'While My Guitar Gently Weeps'

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Sobre a arte de mimar a si mesmo

Vou acabar me estragando. É incrível como posso fazer o que bem entender, se é que entendo bem alguma coisa, e ainda assim não me impôr limites. Vejo pais educando os filhos, namorados fazendo vezes de espiões, donos adestrando seus animais e me pergunto se não devia ser um pouco mais rígido comigo.

A verdade é que nunca me eduquei direito. Não importa o tamanho do problema que eu arrume, sempre apareço na hora certa para livrar minha cara. É nisso que consiste a incrível arte de mimar a si mesmo: cometer monumentais atentados à saúde e ao bom-senso tendo a certeza de que você mesmo vai resolver tudo depois sem deixar nenhum vestígio. Resumindo, se não fosse por mim, não sei o que seria de mim.

Por exemplo, com o tempo perdi todo o respeito por prazos. Não que eu deixe de cumpri-los na maioria das vezes, mas pode-se dizer que as vésperas adquiriram um lugar todo especial em minha vida ao longo dos anos. O lado bom é poder reclamar que certos prazos estão curtos demais sem realmente se importar com isso. Acredite, saber estabelecer um prazo padrão de um dia para tudo pode sim ser uma preocupação a menos se você souber fazê-lo.

A hora de dormir também tem sido algo que me tira o sono. Me permito dormir horas e horas durante a tarde para, durante a madrugada, ser um zumbi cuja única companhia é uma programação "ninguém está assistindo mesmo" na tevê. Mesmo assim, ainda tenho a bondade de compensar cada minuto depois. Mas até onde sei, o método da compensação é baseado em
oferecer alguma recompensa a cada conduta correta.

Isso sem contar os problemas com a bebida. Não que eu seja um bêbado inveterado, pois bebo moderadamente o suficiente para detectar que tenho um problema. Sempre digo para mim mesmo "você precisa parar de beber tanto, chega!", mas me escuto? Não, como sempre. Ou melhor, bebo sempre. Enfim, o tal problema trata-se do incrível paradoxo de quanto mais você bebe, menos bêbado você fica. Criar resistência é mesmo um mal inevitável e que exige medidas drásticas, como cortar o álcoól da dieta. Colocando o dilema em termos mais profundos, é como ter um objetivo e, quanto mais você luta para atingí-lo, mais você se distancia dele. Impressionante como até ficar bêbado era mais prazeroso na infância.

Como posso me tornar um sujeito legal se é esse o exemplo que dou para mim?

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Verde

- De que cor são?
- verde.
- Ah.
- não sei por que a pergunta. Por que um cego ia se interessar pela cor de alguma coisa? pior ainda, pela cor de um olho, logo um olho!
- Mas eu sei o que é um olho. Só porque sou cego não quer dizer que eu não saiba. Um paralítico sabe o que é uma perna, não sabe?
- tá, pode até ser, mas verde você não sabe o que é.
- Claro que sei. Eu sou cego, não daltônico.
- nem convincente.
- Essas balas de maçã que você está comendo agora, por exemplo.
- o que têm elas?
- Não são de maçã vermelha.
- como você sabe?
- Pelo gosto. Lembra que eu te pedi uma?
- lembro.
- Pois é, tinha gosto de verde.
- e desde quando cor tem gosto?
- Desde sempre. Você não comeria um bife azul, comeria?
- eu não!
- Nem eu, deve ser um horror. E o cheiro deve ser insuportável também.
- como é cheiro de azul?
- É.. ham.. azul! E o verde? Você já viu, não é? Como ele é?
- é.. ham.. verde..
- Você não sabe explicar?
- você sabe?

sábado, 12 de julho de 2008

Sobre sofás e ampulhetas

Ele arrancou com os dentes a pele que insistia em ficar pendurada ao lado das unhas roídas. No sofá em que acabara de sentar, um buraco no lugar ao seu lado indicava que alguém levantara dali havia pouco tempo. Perguntou à recepcionista o quanto ia demorar. Precisou fazê-lo duas vezes para desviar sua atenção da televisão, que falava algo sobre declaração de impostos.

A recepcionista vestia um uniforme todo azul-claro com a parte inferior da saia um pouco amassada, talvez de tanto limpar nela a lente de seus exagerados óculos que embaçavam constantemente por causa do ar-condicionado muito próximo. Pouquinho, ela disse como quem não quer incomodar a televisão. Vai demorar só mais um pouquinho.

Mentira, ele pensou. O buraco ainda fundo e quente ao lado provava isso. Tinha o costume de atribuir aos sofás de sala de espera a função de ampulhetas. No momento em que o lugar desocupado ficasse liso novamente e, o seu, suficientemente fundo e quente, seria como se a areia passasse para o seu lado do sofá e ele seria finalmente chamado. Como acreditar naquelas lentes embaçadas se a mobília dizia exatamente o contrário? Não é à toa que pessoas como eu são conhecidas como "pacientes", ele pensou.

No momento em que levantou para ir até o balcão enfrentar a recepcionista munido de sua teoria sobre sofás e ampulhetas, o paciente ouviu um barulho vindo da porta. Alguém a puxou antes de perceber que deveria empurrá-la. Após superar as adversidades do puxa-empurra comum em consultórios e portarias de prédios, um homem esquelético ganhava a sala de espera e vice-versa. Seus passos lentos o conduziam até o sofá, para o qual o paciente voltava a passos bem mais velozes e temerosos em perder a profundidade conquistada na almofada ao longo da última meia hora.

De nada adiantou. O esquelético sentou ali mesmo. Meteu sua mão enrugada no bolso direito das calças e dele tirou uma carteira de dinheiro, outra de cigarros, um isqueiro e alguns papéis amassados que pôs junto às revistas dispostas no criado mudo ao lado. Após fazê-lo, respirou alto como quem pensa alto que está cansado e impaciente.

O paciente, ainda de pé e irritado com a secretária mentirosa e o esquelético impaciente, procurou disfarçar sua frustração fingindo se aproximar da televisão para ouvir melhor. Estava bem no meio dos comerciais, mas não lhe ocorreu idéia melhor do que puxar a porta e ir embora, o que seria o mesmo que se dar por vencido. Além disso, percebeu ter uma vantagem sobre seu oponente: pelo menos uns dez quilos a mais.

Confiante, voltou para o sofá e sentou com força na almofada ao lado do impaciente, que mesmo impulsionado repentinamente para cima permanecia impassível. Em poucos minutos, as almofadas já estavam com quase a mesma profundidade. Só mais um pouco, ele pensou recordando a mentira da recepcionista. O olhar embaçado agora se dirigia ao sofá e convidava o impaciente esquelético a entrar na sala de consulta, chegando a referir-se a ele como 'preferencial'. Um traste trapaceiro, isso sim, praguejou o paciente enquanto se dava por vencido.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Transitivos

Ela vestiu o amarelo e calçou o de salto. Ouviu tocar, mas quando foi atender, não chamava. Ouviu de novo e foi lá, não sem antes maquiar e pentear. Ao abrir, fechou novamente. Era só a da frente, que havia chegado bêbada e agora entrava no seu próprio. Fechou.

Ele veio pelo mais longo e demorado. Pagou, desceu e, irritado, fechou com força. Ao entrar, chamou o social, mas ia demorar. Pegou o de serviço. Tocou, mas ninguém atendeu. Uma cambaleante apareceu e disse que estava vazio, para parar. Ele tocou mais uma vez e deixou pra lá. Não era a primeira, e, por isso, decidiu que seria a última.

No seguinte, apesar do anterior, ela acordou e preparou o favorito dele. Esperou até esfriar e saiu irritada, fechando com força a do 501. Chamou os dois, mas o social estava no décimo e, o de serviço, no térreo. Foi de escada.

Enquanto isso, ele despertava. Levantou sem mexer muito e vestiu em silêncio para não acordar, não sem antes bocejar e pentear. Após sair e fechar discretamente a do 502, viu que a do social já estava e voltou assustado. Saiu novamente e novamente pegou o de serviço, que estranhamente também estava. Desceu e, na calçada, chamou o primeiro, que passou direto. O segundo não viu e o terceiro fingiu que não viu. O quarto estava ocupado. Foi no quinto, mas, depois de entrar, viu que era o mesmo do anterior. Xingou, desceu, e bateu com força, mas dessa vez não pagou.

A da escada estava emperrada e ela precisou subir de novo. Ele esqueceu a carteira e precisou subir de novo. Ela não queria. Ele, muito menos. Subiram; ela de escada, ele de social. Se encontraram; ele sem carteira, ela sem fôlego. Discutiram; ela sem razão, ele muito menos. Terminaram; ele arrependido, ela sem fôlego. Voltaram; ele sem fôlego, ela arrependida. Entraram; e não lhes restou mais fôlego nem arrependimento.

A carteira jamais foi resgatada.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Cortina

Há por detrás daquelas nuvens o que não há por detrás de cortina alguma. Há entre elas um vazio diferente do que há em mim. Se eu fosse até lá levando meus palcos e minhas máscaras, nem o vazio de lá seria diferente do daqui e nem o daqui seria igual ao de lá.


sexta-feira, 11 de abril de 2008

Vidro na garganta, faca no ouvido e tiro na cara

Aquele sorriso não lhe caía bem. Trazia consigo algo de sarcástico que, combinado com uma evidente falta de motivo para existir, me deixou um pouco assustado. "Boa noite", falei enquanto passava a toalha no balcão despretensiosamente. Nem coragem de falar olhando para o sujeito eu tive. "Duas cervejas", ele foi dizendo sem nem me olhar também, enquanto se escorava de costas pra mim.

- Entendo. Mas como você pode saber que ele não lhe olhou se você também não estava olhando?

Era um desses sujeitos arrogantes, que não olham pra ninguém e, quando olham, é porque algo está muito errado. Continuando: alguém assim, como é de se imaginar, estava sozinho. Desde o momento que entrou no bar, passeou um pouco, pôs e tirou as mãos do bolso algumas vezes e foi ao banheiro outras tantas... como eu disse, ele não inspirava muita confiança. Sempre que podia, eu o observava um pouco. Mas o que me deixou cabreiro mesmo foi essa história de duas cervejas. Ele era só um, não era? Então pra quê pedir duas? Duas de uma vez!

- Você deu as duas?

Dei. Ele pagou com uma nota de vinte. Se eu desse uma só, não iria ter troco e, acredite, você não ia querer negociar com um tipo daqueles. Peguei duas garrafas e um abridor. Abri uma só e fui atender os outros clientes. "Você não vai abrir a outra?", ele perguntou enquanto eu ia para o outro lado. Fingi que não escutei, pois a música estava alta e isso acontece bastante nesses casos. Além do mais, abrir duas cervejas ao mesmo tempo para alguém é algo meio esquisito, mas como sou um cara tranqüilo, preferi deixar pra lá, sabe como é. Olhando assim, meio de espreita, vi o elemento saindo com a que abri, deixando a fechada em cima do balcão, mesmo tendo pago por ela.

- O que você fez?

Bom, já que ele não queria e o bar não ia ter prejuízo mesmo, resolvi pegar a cerveja pra mim. Na hora pareceu uma boa idéia. A vantagem do meu trabalho é que beber em serviço é quase uma obrigação. Eu só havia dado uns dois ou três goles, quando vi aqueles olhos malignos na minha direção. Ele foi tirar satisfação por eu estar tomando a cerveja "dele". Ora, o cidadão vem, pede duas cervejas, quer abrir as duas, deixa uma no balcão e vem reclamar porque eu resolvi não disperdiçar? Cá entre nós, acho que ele usou a cerveja fechada como pretexto para me agredir.

- E era isso mesmo?

Eu não sou um cara preconceituoso, mas esse aí se mostrou pior ainda do que transparecia. Você tinha que ouvir as coisas que ele dizia pra mim. Até ofereci a cerveja de volta, mas ele queria mesmo era briga. Disse que não queria mais depois que um desconhecido como eu havia posto a boca nela, que queria outra. Um alcóolatra, falando de uma garrafa como se fosse namorada dele ou coisa do tipo! Agora convenhamos: sair de uma vez de uma situação em que o bar não tinha prejuízo e eu tinha cerveja grátis para outra, em que o bar perdia uma cerveja e a única coisa que eu ganhava era gritos de um qualquer, foi meio que um baque. Me acalmei e resolvi me impôr devolvendo a ele a cerveja que eu vinha tomando, era um meio termo justo, você há de concordar.

- Como você devolveu?

Quebrei a ponta da garrafa na parede e enfiei os cacos que ficaram na minha mão bem fundo na garganta dele. Saiu muito sangue e todo mundo viu. O desgraçado até olhou pra mim, não entendi bem porque. A música parou e as pessoas abriram uma roda em volta. Foi quando eu tirei os cacos de vidro da garganta dele e afundei naquela cara nojenta. Sabe, eu não sou de torturar quem já estou matando, mas é que aquele sujeitinho realmente me tirou do sério. Eu sei porque você está me olhando assim, deve estar imaginando o que ele foi fazer quando saiu do balcão, porque pediu duas cervejas e porque quis abrir as duas.

- Ele não estava só. Foi ao bar comprar uma cerveja para ele e outra pro amigo. Saiu do balcão para entregar a cerveja dele e, quando voltou, bem, você já sabe.

Eu não minto, ele realmente estava só. Uma meia hora antes, o tal amigo invadiu a cozinha sem permissão e eu enfiei uma faca no ouvido dele. Tavez o desgraçado tenha descoberto que matei o amigo dele e quis descontar em mim. Assassino de uma figa...

- Impossível, o amigo foi interrogado agora a pouco na sala ao lado. Foi liberado, inclusive.

Olha, mais uma vez, não vou mentir pra você, mas... se isso for mesmo verdade, acho que matei o cara errado, seu policial. Você acha que isso pode complicar a minha situação de alguma maneira?

- Qual dos dois era o errado?

Não sei. Como você já sabe, eram dois. Eu não procurava encrenca naquele dia. Bom... não naquela noite. Mas um entrou na minha cozinha, é o da faca no ouvido. O do vidro na garganta usou a garrafa fechada para me confrontar. Os dois pareciam ser os certos, deve haver algo que não estou entendendo.

- Bem, éramos três.


domingo, 13 de janeiro de 2008

A intrigante relação entre malas e caixões

Ter o costume de falar a coisa certa na hora certa não significa nada nas horas erradas. É quando dizemos qualquer coisa só por dizer, mesmo que aquilo queira significar algo. Mas se querer ter um significado não faz com que tenhamos algum, por quê nossas etéreas combinações de palavras teriam?

Um funeral como este, por exemplo, é um festival de pêsames. Cada um traz o seu e apresenta da maneira mais atrativa (claro que o conceito de atrativa varia bastante de pessoa para pessoa) que conseguir. Eu mesmo trouxe o meu, espero ter me saído bem. "Qualquer coisa que você precisar, pode contar comigo. Qualquer coisa, ouviu bem?". Também pensei em não dizer nada, traduzir tudo num gesto cortês combinado com uma cara amarrada. O problema aí é que há sempre uma pessoa com um pêsame falado que vai desviar a atenção para ela, até porque é bastante comum essa modalidade gestual ser confundida com um epílogo de algo que já foi dito, o que automaticamente passa a vez para outra pessoa e assim por diante.

É como sempre digo: se você quer demonstrar condolescência sem palavras, deve saber que os gestos costumam lograr bons-resultados, mas podem gerar mal-entendidos se a atenção para eles for interrompida ainda no meio da performance. De qualquer maneira, já fiz a minha. Falada e convencional, como não fazia há tempos. Céus, devo estar perdendo o tato! Pelo menos ainda me restam os outros quatro sentidos, tem gente aqui dentro bem pior que eu! Uma velha piadinha de velório... eu mesmo bolei e lhe confesso, meu amigo, que já derreti muitos icebergs com essa aí.

Ei! o que foi? Já tem que ir? Mas o papo tava tão bom, rapaz... Sendo assim, até o próximo!