sábado, 22 de dezembro de 2007

Culpa, vergonha, motivos, implicações e espirros

Entrei no closet e abri o armário. Da última prateleira, puxei aquela mala enorme. Mesmo vazia, pesa horrores. Pus a mala no chão, abri e espirrei duas vezes. Foi pouco. Normalmente espirro umas quatro ou cinco seguidas nessas ocasiões mais empoeiradas.

Engraçado como em algum momento durante o espirro você esquece completamente de tudo. A única coisa que importa é satisfazer aquela única vontade. Talvez apenas por um mísero milésimo de segundo, é verdade, mas, nesse milésimo, tudo se esclarece e se resume a um só objetivo, sem culpa, vergonha, motivos ou implicações para complicar as coisas. Ah, se eu pudesse prolongar essa sensação em que nada mais existe a não ser um desejo maior que tudo e prestes a ser realizado...

De volta à mala. Confesso que me sinto um pouco culpado, pois a viagem está programada desde a semana passada e minha esposa me pergunta há uns três dias "Querido, já preparou as malas?". Numa das vezes, eu respondi que sim. Em parte, porque já não restavam mais desculpas suficientes para me justificar e, em parte, por ter vergonha de ser tão inerte e não ter iniciativa para nada. Me sinto culpado por esse motivo. As implicações?

Aqui estou eu, às seis da madrugada, arrumando a dita cuja escondido. Minha mulher dorme no quarto, por isso a preocupação em manter os espirros mais raros e discretos que de costume. Mas pensando bem, será que vale a pena abdicar do meu fabuloso mundo dos espirros por mera culpa, vergonha, motivos e implicações? Já basta meus orgasmos estarem submetidos a esses caprichos. Não, não vou deixar isso também tomar conta daqueles míseros e preciosos milésimos!

De qualquer forma, a mala ainda está vazia. Preciso parar de divagar e deixar logo isso com cara de trabalho cumprido. Acho que quatro camisas e três bermudas devem bastar. Porque será que protelei tanto essa tarefa? Decidir viajar e não querer arrumar as malas não é nenhum fenômeno recente na humanidade, deve haver alguma razão. Vai ver é porque não faz sentido alguém viajar e levar consigo as coisas de casa. Afinal, se você quer ou precisa tanto dessas coisas, deveria ficar perto delas. De que adiantam nossas tão planejadas e revigorantes viagens se estamos sempre fazendo o máximo para nos sentir em casa? Acho que devíamos parar com essa masturbação turística. É isso, vou viajar sem mala nenhuma.

Uma vez bati meu carro porque espirrei num momento crucial. Claro que foi chato, mas só porque depois de espirrar voltei ao estado de sempre. Se a sensação de estar espirrando permanecesse, seria como se eu nunca tivesse amassado o capô, pois não teria percebido a batida nem nada além de minha vontade em vias de se satisfazer. Vou procurar reproduzir esse estado de espírito nos outros momentos da minha vida. Droga, ela acordou e está vindo pra cá! Calma... o que eu faria se estivesse espirrando? Pensa, pensa!

Bom dia, querida! Ah, isso? É que estou tirando tudo da mala. Resolvi que vou viajar sem bagagem nenhuma. Claro que conheço as implicações, pelo menos ouça os meus motivos antes. Sei. Ham. Certo. Você é que devia se envergonhar, a culpa é sua, me pressionando o tempo todo pra arrumar essa droga de mala! Cuidado, vai levantar poeira, quer que eu passe o dia inteiro espirrando? Deixa que eu mesmo ponho. Viu só? Eu avisei. Saúde.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Céu de abóbora

Será que aquele vestido lhe servia? Ora, claro que sim. Se toda a felicidade do mundo cabia naquele vestido de noiva, por quê ela não caberia? Parada na calçada, sentia-se mera poeira cósmica debaixo daquele céu vestido de estrelas tão brilhantes quanto as esmeraldas que decoravam seu sonho de consumo conjugal. Ou seriam diamantes? Pérolas, talvez.. não lhe importava. Apenas queria. E ali permanecia imóvel, querendo, enquanto seus desejos quebravam o vidro da vitrine e despiam o manequim.

Mas como fazer para despir o céu que tanto invejava? Ali estava ele, imponente, ostentando constelações, enquanto ela cobiçava com todas as suas forças um vestido ornamentado por pedrinhas brilhantes das quais sequer sabia o nome. Mas não era bem o vestido que tanto queria, e sim um pretexto para usá-lo, pretexto que não encontrava.

Invejava o céu; e como invejava.. queria também ter sua própria lua, uma lua-de-mel, quem sabe. E seus desejos viraram foguetes: grandes, perigosos, no mundo da lua. Porém, voltaram à Terra quando lembraram que o céu iria despir-se por si só e dentro de algumas horas não mais teria estrelas ou lua-de-mel, mas apenas aquele laranja do crepúsculo, que até ele viraria uma abóbora no fim da noite.

Despiu o céu, sorriu e continuou andando, com seu sapatinho de cristal, à procura do pretexto encantado.


domingo, 2 de dezembro de 2007

O gordo e o insone

baseado em http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL42503-5602,00.html

"Tem noites em que minha consciência pesa mais que minhas pálpebras. Nessas noites, ao contrário de outras, sair de perto de mim não é uma opção. Sou assombrado e assombração", disse o insone após um longo período de silêncio.

O vento respondeu com um assobio, como se estivesse debruçado na janela de vidro atrás dele. Para disfarçar o susto, esfregou os olhos e, por cima do ombro, olhou para a parede. Os dois ponteiros apontavam para o número cinco. "Manhã ou tarde?", perguntou olhando por cima do outro ombro. "Tarde.", limita-se a responder um homem gordo e suado, sua única companhia naquela noite, enquanto lavava a louça suja atrás do balcão onde havia deixado seu enorme paletó.

Após mais um longo discurso proferido pelo silêncio, o insone continuou, olhando fixamente para a tela do computador e aparentando uma serenidade imprevista: "Horas como a de agora são as mais fáceis, quando a consciência acorda e todo o resto vai dormir". O gordo se aproxima, arrasta uma cadeira até perto do computador e, mais uma vez por cima dos ombros do insone, protesta: "Sempre achei que eram as horas mais difíceis, quando ela fica por si só, não?"

"Mas se ela for pesada como a minha e o objetivo for passar onze dias sem dormir, serão as horas menos conturbadas", explicou o insone enquanto rodava 180 graus na cadeira. Agora os dois estavam de frente um para o outro. E continuou:"Então tudo o que me forma está em repouso, a não ser a única coisa capaz de tirar o sono de qualquer pessoa". O gordo pergunta, quase interrompendo "Então, nesse exato momento, você é o assombrado ou a assombração?".

"Como eu disse, não tenho a opção de sair de perto de mim, pelo menos até daqui a sete dias. Aliás, nem você, já que esse bar está fechado até lá e vocês têm que fiscalizar se bato ou não o recorde, não é? Então acho que é você quem está me assombrando", falou o insone com um tom desafiador. O gordo levanta-se da cadeira, olha para baixo e discorda: "Mas eu só fico nesse bar durante o turno da noite. Depois disso, vou para casa dormir e o sujeito do outro turno entra. Já você está o tempo todo aqui há quatro dias. Como eu poderia ser a assombração, e não você, se é por sua causa que estou aqui?"

A sombra do gordo se projetava sobre o insone, cobrindo-o um espectro largo e disforme que ofuscava por completo os ainda tímidos raios de sol que surgiam da janela, como um eclipse. De algum lugar entre toda a penumbra, a voz do insone respondeu: "Uma coisa lhe digo, com certeza você pesa mais que minhas pálpebras".

O insone continuou como tal nas sete noites seguintes. Completados os onze dias, o gordo, que jamais viria a emagrecer, foi para casa. Desde então, os dois se encontraram por acaso algumas poucas vezes, em alguns poucos lugares, até esquecerem completamente um do outro.