Entrei no closet e abri o armário. Da última prateleira, puxei aquela mala enorme. Mesmo vazia, pesa horrores. Pus a mala no chão, abri e espirrei duas vezes. Foi pouco. Normalmente espirro umas quatro ou cinco seguidas nessas ocasiões mais empoeiradas.
Engraçado como em algum momento durante o espirro você esquece completamente de tudo. A única coisa que importa é satisfazer aquela única vontade. Talvez apenas por um mísero milésimo de segundo, é verdade, mas, nesse milésimo, tudo se esclarece e se resume a um só objetivo, sem culpa, vergonha, motivos ou implicações para complicar as coisas. Ah, se eu pudesse prolongar essa sensação em que nada mais existe a não ser um desejo maior que tudo e prestes a ser realizado...
De volta à mala. Confesso que me sinto um pouco culpado, pois a viagem está programada desde a semana passada e minha esposa me pergunta há uns três dias "Querido, já preparou as malas?". Numa das vezes, eu respondi que sim. Em parte, porque já não restavam mais desculpas suficientes para me justificar e, em parte, por ter vergonha de ser tão inerte e não ter iniciativa para nada. Me sinto culpado por esse motivo. As implicações?
Aqui estou eu, às seis da madrugada, arrumando a dita cuja escondido. Minha mulher dorme no quarto, por isso a preocupação em manter os espirros mais raros e discretos que de costume. Mas pensando bem, será que vale a pena abdicar do meu fabuloso mundo dos espirros por mera culpa, vergonha, motivos e implicações? Já basta meus orgasmos estarem submetidos a esses caprichos. Não, não vou deixar isso também tomar conta daqueles míseros e preciosos milésimos!
De qualquer forma, a mala ainda está vazia. Preciso parar de divagar e deixar logo isso com cara de trabalho cumprido. Acho que quatro camisas e três bermudas devem bastar. Porque será que protelei tanto essa tarefa? Decidir viajar e não querer arrumar as malas não é nenhum fenômeno recente na humanidade, deve haver alguma razão. Vai ver é porque não faz sentido alguém viajar e levar consigo as coisas de casa. Afinal, se você quer ou precisa tanto dessas coisas, deveria ficar perto delas. De que adiantam nossas tão planejadas e revigorantes viagens se estamos sempre fazendo o máximo para nos sentir em casa? Acho que devíamos parar com essa masturbação turística. É isso, vou viajar sem mala nenhuma.
Uma vez bati meu carro porque espirrei num momento crucial. Claro que foi chato, mas só porque depois de espirrar voltei ao estado de sempre. Se a sensação de estar espirrando permanecesse, seria como se eu nunca tivesse amassado o capô, pois não teria percebido a batida nem nada além de minha vontade em vias de se satisfazer. Vou procurar reproduzir esse estado de espírito nos outros momentos da minha vida. Droga, ela acordou e está vindo pra cá! Calma... o que eu faria se estivesse espirrando? Pensa, pensa!
Bom dia, querida! Ah, isso? É que estou tirando tudo da mala. Resolvi que vou viajar sem bagagem nenhuma. Claro que conheço as implicações, pelo menos ouça os meus motivos antes. Sei. Ham. Certo. Você é que devia se envergonhar, a culpa é sua, me pressionando o tempo todo pra arrumar essa droga de mala! Cuidado, vai levantar poeira, quer que eu passe o dia inteiro espirrando? Deixa que eu mesmo ponho. Viu só? Eu avisei. Saúde.
Um comentário:
Além do bom humor, esse texto traz excelentes reflexões, como se concentrar - exclusivamente - no exato instante que se está vivendo, em “a única coisa que importa é satisfazer aquela única vontade”, e sobre levar conosco as nossas coisas (que curioso), em: “vai ver é porque não faz sentido alguém viajar e levar consigo as coisas de casa. Afinal, se você quer ou precisa tanto dessas coisas, deveria ficar perto delas. De que adiantam nossas tão planejadas e revigorantes viagens se estamos sempre fazendo o máximo para nos sentir em casa?”
Muito, muito bom.
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