terça-feira, 4 de outubro de 2011

De dia

Vocês se afastaram e nós fomos embora. Não queríamos sair dali sem nenhuma imagem guardada, então passamos o dia capturando luz com nossas retinas até fazermos anoitecer. Fomos para casa e deitamos em vigília com o dia guardado sob as pálpebras, mas quando acordamos vimos que ele já havia escapado novamente.

Não havia ninguém por perto para recriminar quando decidimos atirar garrafas ao mar e mutilar livros. Arrancamos uma página de sumário e nela escrevemos nosso dia. Bebemos o delírio tinto e repusemos o conteúdo em forma de rabiscos falhos e arestas rasgadas. Confinado entre o vidro, a rolha e a água, o dia se afogou no horizonte e nós testemunhamos seu sangue se alastrar vermelho pelo oceano até só restar a noite. Nosso dia estava guardado a salvo no Atlântico. Entretanto, enquanto dormíamos, seu caminho deve ter cruzado com o de algum pirata intrometido que abriu a garrafa e o libertou, pois acordamos mais uma vez com a luz da manhã puxando nossas cobertas.

Ignorando a indiscrição das roupas que de um lado nos cobrem e de outro nos tocam, resolvemos usar nossas próprias peles como isca para o dia fugitivo. Abrimos os poros e sugamos mais luz, deixando o dia nos fecundar, nascer e morrer em nós. À hora do crepúsculo, já tínhamos a mesma cor que o céu. E continuamos camaleões, guardando o dia na pele até ficarmos escuros como a noite que enfim despíamos. Dormimos sentindo o sol a nos consumir de dentro para fora, vivo e guardado nas nossas entranhas. Grávidos. Mas o dia começou a nos abandonar a pele. Primeiro as costas, depois os braços e mesmo o rosto descascando, cada pedaço de sol caindo para fora novamente, e logo voltamos a ser tão pálidos quanto antes, tão claros quanto o dia que insistia em nascer. Demos a luz à luz.