quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A saudade num copo d´água

Pra quê falar de saudade se posso falar de um copo d´água? Ele, vidro, transparente, cantos arredondados. A boca quase quadrada e a base quase redonda, dessas que dão a impressão de haver mais líquido ali do que realmente há. Ela, também transparente, onipresente, feita de si mesma. Tensa. Ela está nele, mas nadando em si. Se arrasta pela base, arranha os cantos, salta para o mais perto da boca que puder até despencar na base outra vez e ter ela mesma a impressão de ser mais do que realmente é.

Ele a tem e preserva cada gota reunida ali num abraço distoante de toda a sua rigidez e imobilidade. Queria poder nadar nela e não poder é sua maior frustração. Uma gota a mais e eles se entreolham enquanto ela se debate de um canto ao outro. Ele finge não ver enquanto deseja mesmo se afogar, ela finge não se afogar enquanto corre para todos os lados em busca de uma saída. Mas o abraço dele a conforta outra vez e promete que sempre haverá espaço para ela entre a boca quase quadrada e a base quase redonda. Ela promete que estará sempre ali.

Pra quê falar de solidão se posso falar de uma gota d´água? A cada nova que surge, o copo fica menor, seu abraço cada vez mais desesperado, sua base cada vez menos convincente. A água tenta sem sucesso desmanchar seus contornos, esticar as fronteiras de vidro e mostrar que ele não cumpriu sua promessa. Ele ainda quer ser parte dela, mas continua sem saber nadar. Se sente tão forasteiro quanto aquelas malditas gotas que sempre tanto o diminuíram, mas, ao contrário delas, não consegue que sejam um só. Ela se sente mais sufocada à medida que ele se sente mais encurralado.

Janela aberta, céu fechado, a chuva entra mal-educada trazendo mais dela para dentro dele, que vê sua própria promessa fugir da boca quase quadrada pra fora. Afinal, estava diminuído como jamais pensou que estaria, enquanto ela, sufocada e decepcionada, fugia transbordante de dentro dele e o deixava inundado de lágrimas. As nuvens caçoaram do seu sofrimento, mas ele sabia que se havia encontrado até uma gota d´água maior que um dilúvio, poderia ser capaz de se tornar um copo d´água maior até que uma nuvem.

Sem a chuva, ele se sentia enorme outra vez. Nadar ainda lhe era impossível, mas podia voar, como a maior das nuvens, carregar toda a água do mundo. As lágrimas haviam secado, mas um desespero mudo lhe dominava, pois, à medida que ia se sentindo cada vez maior, se sentia cada vez mais vazio.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Vinte e três

- Quantos anos você tem?
- Vinte e três.
- Vai morrer com quarenta e seis?
- Vou?
- Perguntei quantos anos você tem, não quantos anos você não tem mais.
- Às vezes sinto que vivi uns oitenta e que apenas me observo de lá, caçoando da minha saudosa juventude. Noutras, tenho treze e me envergonho do fragmento de multidão que me tornei.
- E nesse momento?
- Nesse momento sou a memória vigorosa do velho vagaroso no andador e a decadência do menino que escondeu sua dentadura. Também observo os dois.
- Mas viver não é só contemplar! Você se multiplica por três para justificar não ser nenhum, não vê como é tolo isso?
- Viver sem ser tolo é impossível. O menino de treze pregou uma peça no velho de oitenta por considerá-lo o quê? Tolo! E o que ele acha da minha calça comprida, da minha carteira assinada e da minha rubrica indecifrável? Tudo tolice, por mais que minha independência e a experiência do velhote provoquem nele certa admiração. Agora, se você me perguntar o que acho desse fedelho, minha resposta vai ser a mesma, e assim por diante. De qualquer ângulo, sou um tolo admirável, pelo menos para mim. E orgulhar esses dois me consome muito.
- Eu acho que você tem vergonha de si mesmo, daí todo esse auto-deboche-sabotagem que te habita. Você nunca foi um velho de oitenta e mal lembra de ter sido um moleque de treze. Pra mim, você é um velho moleque de vinte e três que sente por si toda a repulsa e apreço do mundo ao mesmo tempo, mas que não sabe lidar com isso.
- Fala como se eu tivesse culpa...
- E tem, sabe que tem. Até porque não pode transferir essa culpa pra mais ninguém. Ao invés disso, transfere pra esses alteregos aí, que jamais ousariam lhe desmentir.
- Culpa de quê mesmo?
- De atrofiar a alma, rapaz!
- Mas ainda tenho muitos anos...
- Mesmo tendo tão poucos?


quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O colecionador de máscaras

"A primeira coisa que você tem que saber é que ninguém coloca uma máscara no rosto pra se esconder", o velho explicou enquanto abria duas das portas de vidro do enorme armário que ocupava toda a parede de sua sala. Dali, tirou com cuidado desproporcional uma máscara que mais parecia uma venda, a não ser pelo fato de ter um buraco aberto para cada olho. Ainda de frente para o armário, prosseguiu, enquanto experimentava o disfarce: "Com uma dessas você poderia ser desde um criminoso até um super-herói, não concorda? Só depende de como você quer ser visto. E se quer ser visto, imagino que seja porque não quer se esconder. Se quisesse, não colocaria uma coisa dessas na cara".

Tirou a máscara, ajeitou desleixadamente os longos cabelos que emolduravam sua calvície e pôs-se a engomá-la na tábua posicionada logo ao lado do armário. "Não muito quente e com pouca força, que esse tecido é fino. O último que alugou trouxe a coitada de volta tão amassada que, quando vi, pensei que ela estivesse chorando, vê se pode!", e pendurou-a novamente no armário, ao lado de uma de lobisomem e outra de Lua. "Olha só essa", disse enquanto pegava a segunda. "Se eu te disser 'Ei, vai lá e faz uma máscara de Lua pra mim que eu quero ir fantasiado de Lua pra uma festa', você vai fazer uma parecida com essa, que eu sei. É minguante, né? Crescente, sei lá. E até se pedir pra uma criança desenhar uma lua, ela também vai fazer essa coisa parecida com a letra C. Sabe por quê?". O velho atravessou a sala com a máscara posta e abriu a janela, deixando a noite entrar. "Porque ninguém quer saber dela!", disse enquanto apontava para a lua cheia que flutuava no céu aquela noite, apresentando-a como se fosse uma aberração óbvia e indiscutível.

"Ninguém quer saber de tudo, nem ver tudo. Ninguém quer usar uma máscara de lua cheia, porque aquilo nem parece uma lua e dane-se o fato de que ela na verdade nunca seca. Aquilo não é uma lua, isso é!", e apontou para a máscara que mantinha no rosto. Voltou ao armário, guardou sua lua no lugar de onde a tirou e dessa vez pegou a que estava pendurada logo ao lado. "Agora, se não se importa, vou aproveitar essa noite de lua cheia pra virar um lobisomem, tudo bem?".

Sentado à beira da janela, se deixava ser contemplado pelos transeuntes, intrigados pela cena pouco convencional que aquele lobisomem lhes proporcionava. "A segunda coisa que você tem que saber é que não se conhece uma pessoa pelo que ela mostra, e sim pelo que ela esconde", explicou com a voz levemente abafada pela máscara que lhe tapava a boca. "Se somos capazes de esconder até a lua quase toda só pra pensar que ela é mais caprichada do que realmente é, é porque treinamos antes em nós mesmos para que pensem que somos mais crescentes, minguantes ou o que seja. É como se fôssemos todos luas cheias disputando um lugar ao sol".

Fechou a janela, tirou a máscara, devolveu ao armário. "Agora vê se escolhe logo alguma aí que eu já tô querendo fechar".