terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Quatro fragmentos de um eclipse

No início, havia medo à paisana. Havia cicatriz aberta de amor amputado por onde foge o sangue que esqueceu o caminho do coração. Havia o silêncio. Não qualquer silêncio, mas aquele feito da lembrança de sons que já não se ouve mais.

Teus lábios são cálices cheios de desejo
que já bebi até a última gota
Não mais mancharei meus lábios com teu batom
nem mancharei com o meu a tua boca

Nossos lábios se encontraram por acidente
numa noite tão inevitável quanto nós
Doce ilusão dos que mentem sem saber
Um vulto onde havia sua voz

E vivemos nessa escuridão noturna
Compartilhando nosso egoísmo
Dividindo sem somar
Parecidos
Para quê?
Paradoxo

***

A porta da rua invadia a casa e de repente o lado de fora engolia o conforto dos móveis, retratos, louças e livros. Foi quando os pesadelos se tornaram mais freqüentes e dormir sequer era necessário para que eles acontecessem. Havia traças no chão da noite e pegadas de dança no céu da noite. E havia ranço de unhas roídas no ar da noite. E havia a noite pesando sobre o carpete mordido enquanto no céu distante a inveja dançava leve e irresistível.

Vamos caçar delírios, eu e você
Eu, que transformei o fim de semana no fim do mundo
Você, que me saqueou as memórias sem dar satisfação

Dizem que a alma não tem sexo
Fingem que o sexo não tem alma
Vamos encarnar um no outro, então

Meu pensamento me escolheu como ouvinte
A brisa me lambeu como um cachorro simpático
Até a mesa molhada do bar me secou as angústias
E você?

Tenho vergonha do que penso, do que falo, do que gosto, do que sou
Penso em você, falo em você, gosto de você
Sou você
E você?

***

O Sol ardendo em febre sobre o asfalto forçava uma intimidade tola enquanto espiava por entre cada fresta que se lhe apresentava na janela. Enquanto isso, esperava por si mesmo do lado de fora. A demência daquele que desfila todos os dias na mesma rua fazendo o mesmo alvoroço no mesmo horário, conhecido por todos pelo mesmo nome. Há algo de mágico nas manhãs solares que não se deixa conhecer completamente por quem presta contas regulares à sanidade. Mas por trás de todo eclipse há uma luz, então deixa o Sol derreter a angústia quando o eclipse passar.

Sou quem quer que finja ser eu
Ou quem quer que eu finja ser
Fingindo ser quem quero
Ou querendo ser quem finjo
Querendo quem finjo ser

***

Corro pros teus braços.
Cantando em silêncio
dançando em
descompasso.

E escorro em teu abraço com um “eu te amo” entalado na garganta que procura uma saída que não seja da boca pra fora. Que seja da minha boca pra sua.