sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Passeio

"Você acredita em vida após a morte?", perguntou o franzino lá do canto após um longo período de silêncio entre os dois. "Vou lhe dizer no que acredito", respondeu o outro, "pra mim essa história de vida após a morte é a maior conversa fiada. Eu acredito em morte após a vida e pronto". O franzino mudou de posição, não por se sentir incomodado, mas porque obtivera a resposta que esperava para engatar o assunto. Sorriu brevemente, como de praxe fazia nessas situações, e perguntou outra vez "E o que você acha que acontece depois disso tudo aqui? Vamos simplesmente deixar de existir, pensar, sentir?".

Agora era o outro que conseguia não a resposta, mas a pergunta que queria, e a respondeu explicando "Você só refuta essa idéia porque não é capaz de imaginar como seria a sensação de não existir. Tudo bem, eu também não sou, mas aceito que, o que quer que exista ou não além de nós, é algo que pelo visto foi feito para não ser percebido, se é que foi feito algum dia. Por isso lhe digo: já que não sabe mesmo qual será o destino, apenas aproveite o passeio!". "Então sou só um curioso?", o franzino ironizou. "E dos piores", emendou o outro.

"Não é só curiosidade nem é só minha. Você estaria mentindo se dissesse que também não sente a existência de um projeto maior. É uma tendência do ser humano especular sobre essas coisas, eu sei, mas o que seria da alegria não fosse nossa tendência a procurá-la? Nunca a vi nem toquei, mas sou capaz de sentir e até de nomear isso, assim como você também é". "Então sou só um mentiroso?", o outro parodiou. "E dos melhores", retrucou o franzino.

"Eu não lembro do dia em que nasci. E, se é para fazer como você e recorrer às adivinhações, acho que ninguém lembra do dia da morte também, sabe porque? Porque assim como quem existe não lembra de não ter existido antes, quem não existe não pode lembrar de alguma vez já ter existido". Quieto e pensativo, o franzino deixou de lado seus breves sorrisos para entender o complexo raciocínio que o outro expusera. A escuridão dominava o ambiente, mas nada além do que estavam acostumados. Frente a frente, os dois por vezes trocavam empurrões, disputando o minúsculo espaço que ora os unia, ora os separava.

"Veja o mundo", sugeriu o franzino. "Você não o acha pequeno e limitado demais?". "Não sei, é o maior em que já estive", o outro respondeu. "Deve haver algo além sim, um deus que foi capaz de entender que precisamos de alimento, ar, água e que nos fornece tudo isso", o franzino quase não conseguiu terminar a frase, à quase interrupção do outro: "E porquê Deus tem que ser bom? Aliás, não precisa sequer ser um ser! E se não houvesse deus nenhum, mas só uma força, uma lei física qualquer que determina o funcionamento de todas as outras?". "Aí ela seria Deus". A resposta do franzino deu ao outro o que pensar. Sentiu que Deus lhe havia posto em xeque, pois existia mesmo que não existisse! "Uma proeza", pensou.

"Não há nada indiferente à vista que não seja íntimo à alma. Só ela é capaz de ultrapassar o horizonte e nos contar daquilo que nunca vimos", o franzino explicou. De repente, ambos concordaram que o mundo era mesmo pequeno e limitado. O desconforto era quase insuportável, os dois debatiam-se com violência. O mundo tal qual conheciam desmoronava e por alguma razão, se sentiam responsáveis por tudo aquilo. Logo, o desconforto evoluiu para uma dor como nunca sentiram antes. O céu se rasgava e, da abertura, o branco mais intenso já visto saltava até eles como que para abduzi-los. Fecharam os olhos.

Aos poucos, a dor virava dormência e esta dava lugar a um desamparo crescente. Não havia mais nada além do clarão em suas vistas. Ao mesmo tempo, uma sensação de liberdade lhes dava a impressão de estarem flutuando de ponta-cabeça, embora sós, separados um do outro e de tudo o que conheciam. Estavam mais sós do que nenhuma vez estiveram até aquele dia que o outro havia pouco profetizara que jamais iria lembrar. A vontade de chorar era imensa e assim o fizeram. Choraram ambos, a plenos pulmões, já envoltos em panos limpos após a retirada do cordão umbilical.


sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A luz que demora anos pra chegar

"Mãe, olha pro céu", disse o garoto enquanto se sentava no encosto do velho banco de madeira da praça. Já pressentindo a repreensão por seus modos feios, que veio na forma de um breve "Senta direito", ele não chegou sequer a ensaiar apoiar os pés no assento, conforme planejara. "Tá, mas olha pro céu", insistiu mesmo destituído de seu conforto incompreendido.

Ao perceber a cabeça de sua mãe inclinada, continuou. "Tem um monte, né? De estrela? Hoje ouvi o cara da televisão dizer que cada uma sai do seu planeta e vem se encontrar com as outras no céu, é verdade?". Ainda com a cabeça para trás, a mãe reage ao depoimento do cara da televisão com um demorado "É mesmo?". "É mesmo. Algumas vêm de pertinho, outras de longe. Por isso que aquela ali ainda tá bem brilhante, ela não precisou viajar muito. Mas tá vendo aquela outra, ali embaixo? Tá tão cansada da viagem que nem brilha direito mais. Com certeza veio de muito, muito longe".

"E o que é que elas vêm fazer no céu?", a mãe perguntou enquanto baixava novamente a cabeça para apoiá-la sobre uma das mãos, agora olhando para o filho. "Ele não disse, mas acho que elas vão porque acham legal lá. E porque podem. Eu queria ir também, mas não posso porque não sei voar ainda", o garoto explicou enquanto saltava para mais uma tentativa de sentar no encosto e pisar no assento. Dessa vez, a reação da mãe se limitou a levantar novamente a cabeça, mas com o simples objetivo de acompanhar seu filho com o olhar. "Mas no planeta delas não tem céu?", perguntou. "Não, mãe! Os planetas ficam no céu, senão eles ficariam onde? Debaixo da terra?", o filho respondeu impaciente.

"É, é. tem razão!", confessou a mãe com o desdém respeitoso que se dispensa à ingenuidade amparada na lógica. E arriscou: "Mas essas estrelas devem gostar mesmo é de mato. Tem sempre um montão no céu das cidadezinhas do interior, já viu?". "Já, e acho que é porque o trânsito pra lá é menos engarrafado. Aí só algumas vêm pro céu da cidade grande".

As sobrancelhas exageradamente franzidas da mãe combinadas com a boca entortada que formava uma cova no canto do rosto compuseram o cenário perfeito para seu "Faz sentido" proferido durante um também exagerado gesto de aquiescência. E perguntou: "E o Sol também é uma estrela. O cara da televisão te contou isso também?".

"Contou que é a maior de todas elas. E de tão grande que é, só pode ir pro céu sozinho, senão engarrafa tudo até no interior!"


domingo, 10 de agosto de 2008

Enquanto minha guitarra lamenta gentilmente

Ele olha para todos os que estão ali e para ninguém ao mesmo tempo. A massa composta por corpos, roupas e rostos que se mexem sem sair do lugar na arquibancada do anfiteatro parece um ninguém gigante alimentado por vários alguéns. "Quanto mais indivíduos, menos individualidade", ele pensou enquanto desviava o olhar para os próprios olhos e percebia que aquilo sequer era necessário, afinal, era em meio à mesma arquibancada que eles também estavam e talvez por isso parecesse impossível contemplá-los com tanta facilidade.

Ainda sem conseguir tirar os olhos da arquibancada, ouviu as primeiras notas do solo de guitarra que vinha do palco: distante dos corpos, roupas e rostos, mas presente em cada movimento, cada tecido e cada expressão ali ausente. Cerrou os olhos que há pouco não conseguia distinguir em meio à multidão e assim pôde encontrá-los, fechados por fora, mas abertos por e para dentro. O sentimento de dormência sumia a cada compasso e cada nota era um solo por si só, suas individualidades agrupadas num alguém-ninguém imponente que varria do chão e do céu todo e qualquer vestígio de vaidade.

Ninguém o avisou que seus olhos estavam fechados e talvez por isso assim os manteve. Não sabia como, mas o controle lhe escapava com as notas que desfilavam sem fim e com o lamento de cada uma delas ao se despedir. Sonhou por um segundo como quem passa dias acordado e se apegou ao lamento, quis que não acabasse, quis comprá-lo, vendê-lo, vender-se para perpetuar aquela sensação como algo seu. Sonhou acordado e, por isso, acordou sonhando. Sentiu o mundo girar, o tempo soprar e os cabelos crescerem.

Foi o susto que o fez abrir as cortinas dos olhos. O solo havia caído no improviso e o ninguém gigante já não era mais um coro. Se tornara vulnerável aos novos lamentos, cada vez mais insistentes e por vezes até desafinados, os erros mais assíduos à medida que o solo crescia. "A vida é improvisada. É preciso improvisar e é preciso errar e a única certeza que preciso é a de que estou aprendendo com cada erro", pensou, apesar de não ser ele o homem empunhando a guitarra que dava luz aos lamentos. "Sem a possibilidade de erro, o improviso morre e com ele morrem todas as outras. Nada vou aprender com a precisão dos acertos, pois preciso mesmo é o improviso".

Ao notar que os corpos, roupas e rostos se emancipavam do ninguém gigante, lembrou que as notas fizeram o mesmo com o solo. Mais uma vez não sabia como, mas em algum momento pessoas e notas divergiram de suas origens e, pervertidas, se misturaram na mesma causa libertária. Agora a nota era um solo, o corpo uma dança, a roupa uma pele, e, o rosto, um sentimento. Tudo havia se invertido, mas no meio disso tudo a música ainda fazia sentido.

E enquanto a guitarra articula gentilmente seus últimos e comovidos lamentos, ele olha para si e para todos os que estão ali ao mesmo tempo.

Inspirado na letra de 'While My Guitar Gently Weeps'