domingo, 10 de agosto de 2008

Enquanto minha guitarra lamenta gentilmente

Ele olha para todos os que estão ali e para ninguém ao mesmo tempo. A massa composta por corpos, roupas e rostos que se mexem sem sair do lugar na arquibancada do anfiteatro parece um ninguém gigante alimentado por vários alguéns. "Quanto mais indivíduos, menos individualidade", ele pensou enquanto desviava o olhar para os próprios olhos e percebia que aquilo sequer era necessário, afinal, era em meio à mesma arquibancada que eles também estavam e talvez por isso parecesse impossível contemplá-los com tanta facilidade.

Ainda sem conseguir tirar os olhos da arquibancada, ouviu as primeiras notas do solo de guitarra que vinha do palco: distante dos corpos, roupas e rostos, mas presente em cada movimento, cada tecido e cada expressão ali ausente. Cerrou os olhos que há pouco não conseguia distinguir em meio à multidão e assim pôde encontrá-los, fechados por fora, mas abertos por e para dentro. O sentimento de dormência sumia a cada compasso e cada nota era um solo por si só, suas individualidades agrupadas num alguém-ninguém imponente que varria do chão e do céu todo e qualquer vestígio de vaidade.

Ninguém o avisou que seus olhos estavam fechados e talvez por isso assim os manteve. Não sabia como, mas o controle lhe escapava com as notas que desfilavam sem fim e com o lamento de cada uma delas ao se despedir. Sonhou por um segundo como quem passa dias acordado e se apegou ao lamento, quis que não acabasse, quis comprá-lo, vendê-lo, vender-se para perpetuar aquela sensação como algo seu. Sonhou acordado e, por isso, acordou sonhando. Sentiu o mundo girar, o tempo soprar e os cabelos crescerem.

Foi o susto que o fez abrir as cortinas dos olhos. O solo havia caído no improviso e o ninguém gigante já não era mais um coro. Se tornara vulnerável aos novos lamentos, cada vez mais insistentes e por vezes até desafinados, os erros mais assíduos à medida que o solo crescia. "A vida é improvisada. É preciso improvisar e é preciso errar e a única certeza que preciso é a de que estou aprendendo com cada erro", pensou, apesar de não ser ele o homem empunhando a guitarra que dava luz aos lamentos. "Sem a possibilidade de erro, o improviso morre e com ele morrem todas as outras. Nada vou aprender com a precisão dos acertos, pois preciso mesmo é o improviso".

Ao notar que os corpos, roupas e rostos se emancipavam do ninguém gigante, lembrou que as notas fizeram o mesmo com o solo. Mais uma vez não sabia como, mas em algum momento pessoas e notas divergiram de suas origens e, pervertidas, se misturaram na mesma causa libertária. Agora a nota era um solo, o corpo uma dança, a roupa uma pele, e, o rosto, um sentimento. Tudo havia se invertido, mas no meio disso tudo a música ainda fazia sentido.

E enquanto a guitarra articula gentilmente seus últimos e comovidos lamentos, ele olha para si e para todos os que estão ali ao mesmo tempo.

Inspirado na letra de 'While My Guitar Gently Weeps'

5 comentários:

Siebra disse...

'I look at the world and i notice it's turning
With every mistake we must surely be learning'
Só espero está aprendendo de verdade.

Beijos, Lennon.

'speesly'

Siebra disse...

estar, Renatinha, estarrr!


'qmqbtcsf'

raquelholanda disse...

Não dá para acreditar o que tu faz com as palavras...
Gosto em demasia delas quando são por ti manipuladas.
Abç.

raquelholanda disse...

Vale uma observação:
"Enquanto minha guitarra lamenta gentilmente" está em 1ª pessoa e o texto está em 3ª pessoa. Será o Caio, o personagem descrito por "ele"?

raquelholanda disse...

Fico bem feliz que tenha gostado dos versos meus.

Ok, ok. Concordo com a sua idéia sim, ora pq não envolver todos que estavam presentes?!
Porém, o que eu quis em verdade dizer é que o título está escrito em 1ª pessoa, e que o texto está narrado em 3ª pessoa. Então, será o "ele" da história o "Caio-autor"?!
rsrs... mas valeu a idéia, a contabilidade, a discussão sobre o texto, tão interessante que é.