A dormência causada pelo soco funcionava melhor do que qualquer força de vontade no sentido de superar a dor. Afinal, era uma mera questão de permuta: golpe antes, anestesia depois. Economiza-se agulhas.
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I.
O relógio de parede marcava duas horas e quinze minutos, pelo que ele pôde deduzir sem muita certeza em meio à escuridão do seu quarto àquela hora. À noite o som do tique-taque se tornava mais evidente que durante o resto do dia, como se todos tivessem ido dormir menos o tempo, que nunca aprendera a cochichar. Irremediavelmente molestado pelo barulho, sentou na beira da cama que, em resposta ao movimento brusco sobre si, resmungou com um rangido, mas sem acordar. Eram portanto só ele e o tempo naquela madrugada sem fim, pelo menos até que um deles o declarasse.
Ao se dar conta de que as roupas da noite anterior ainda o vestiam, desabotoou os dois botões da camisa que insistiam em permanecer cumprindo sua função, mas não a tirou. Arrancou os tênis sem desamarrá-los, mas manteve as meias, assim como as calças, pois o trabalho que teria ao se levantar para tirá-las não compensaria. Deitou outra vez, mas sem dormir.
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O par de luvas vermelhas de repente se transformou num exército rubro especialmente treinado para deixar seu rosto igualmente vermelho. Já se sentia roxo quando o homem de blusa listrada interveio. Sentou, cuspiu, bebeu, cuspiu, ouviu o homem de boina, levantou. Seu exército não foi junto e precisou encarar o outro sozinho com apenas duas de suas luvas. Estava vermelho.
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II.
Piscou os olhos e, ao abri-los novamente e olhar para o relógio, a madrugada lhe saudava de braços abertos às três horas e quarenta e cinco minutos. Sentou na beira da cama e apoiou o queixo sobre uma das mãos enquanto olhava para aqueles ponteiros barulhentos como se fossem as pernas do tempo. Quem sabe assistir a tão monótono espetáculo pudesse fazê-lo dormir novamente... Observando a madrugada desfilar, pensou no quão sórdido era aquilo tudo. Queria dormir naquele momento, mas não podia. Quando acordasse, em compensação, aí sim teria sono. Sono não, vontade de dormir. A possibilidade de que tivesse um sono para si só começaria a se tornar concreta quando a noite lhe acenasse com um dos braços na noite seguinte, às nove e cinco.
"Sinto sono ao acordar e disposição ao ir para a cama", disse ou pensou em dizer enquanto fazia uma careta como a de alguém que descobre um segredo terrível sobre outra pessoa. Talvez sono fosse como sexo, que tem quem pense que quanto mais clandestino melhor. Lembrou de cada aula que perdeu com o rosto grudado à carteira, cada atraso que programou debaixo daquele mesmo lençol no qual estava sentado, cada telefone que deixou tocar, cada campainha que deixou de atender, cada desculpa que arquitetou dentro das pálpebras. Não haveria masturbação para aquilo e talvez por isso se empenhasse mais arduamente em realizar os anseios do sono que os da libido. E subitamente pervertido pelo sono, se deixou despejar sobre o colchão mais uma vez.
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As cordas do ringue lhe amparavam o corpo, como se permanecer de pé fosse menos doloroso. Bem intencionadas, mas burras como cordas, insistiam em jogá-lo nos punhos agitados do adversário. Queria cair, mas não conseguia. Corda, soco, corda, soco. Tontura. Soco. Não. Eram as cordas. Queria cair, mas não sabia para que lado ficava o chão.
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III.
Sobressalto. Após observar a vertigem fugir e o mundo, pego desprevenido, recuperar desajeitado a nitidez, deparou-se com a madrugada bêbada e cambaleante no relógio às cinco da manhã. Dali a uma hora e meia ela enfim recolheria os ombros e se abaixaria como um ator ao fim de uma peça, ovacionado pelo público enquanto fecham-se as cortinas. Ele, por sua vez, abriria as suas e começaria a desempenhar seu papel. Mas ainda faltavam noventa minutos até que o tique-taque não pudesse mais ser ouvido em meio a tudo que também não poderia ser ouvido. Um jogo de futebol até que botões e cadarços voltassem a ser moda. Uma hora e meia até finalmente sentir que saberia valorizar um colchão.
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Desistir ou não é irrelevante, pois quando se está derrubado, a perspectiva que se tem das coisas muda. Perde-se a dignidade, ganha-se uma meta. Ele era o único com uma meta ali. Ouvia números cada vez mais baixos enquanto reunia forças para interromper a sequencia. Já sabia para que lado ficava o chão e descobriu que nele teria que se apoiar para sobrepujar a gravidade. Sentia dor a cada contato com o solo, até convencê-lo a impulsionar seu corpo para cima. As dores, cicatrizes, hematomas, cortes e ossos quebrados estavam todos de pé.
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IV.
Havia perdido o fim da peça estrelada pela madrugada. Às quinze para as sete, ela, já travestida de manhã, lhe oferecia uma mão para ajudá-lo a levantar. Só mais cinco minutos? Não se pede tempo ao tempo, pois ele se acha tão suficiente que, a qualquer descuido, podemos perdê-lo. Afinal, é o presente que sempre passa e, o passado, a única coisa que permanece.
Mau hálito, ramelas, cara amassada, e mau humor estavam todos de pé.