quinta-feira, 31 de julho de 2008

Sobre a arte de mimar a si mesmo

Vou acabar me estragando. É incrível como posso fazer o que bem entender, se é que entendo bem alguma coisa, e ainda assim não me impôr limites. Vejo pais educando os filhos, namorados fazendo vezes de espiões, donos adestrando seus animais e me pergunto se não devia ser um pouco mais rígido comigo.

A verdade é que nunca me eduquei direito. Não importa o tamanho do problema que eu arrume, sempre apareço na hora certa para livrar minha cara. É nisso que consiste a incrível arte de mimar a si mesmo: cometer monumentais atentados à saúde e ao bom-senso tendo a certeza de que você mesmo vai resolver tudo depois sem deixar nenhum vestígio. Resumindo, se não fosse por mim, não sei o que seria de mim.

Por exemplo, com o tempo perdi todo o respeito por prazos. Não que eu deixe de cumpri-los na maioria das vezes, mas pode-se dizer que as vésperas adquiriram um lugar todo especial em minha vida ao longo dos anos. O lado bom é poder reclamar que certos prazos estão curtos demais sem realmente se importar com isso. Acredite, saber estabelecer um prazo padrão de um dia para tudo pode sim ser uma preocupação a menos se você souber fazê-lo.

A hora de dormir também tem sido algo que me tira o sono. Me permito dormir horas e horas durante a tarde para, durante a madrugada, ser um zumbi cuja única companhia é uma programação "ninguém está assistindo mesmo" na tevê. Mesmo assim, ainda tenho a bondade de compensar cada minuto depois. Mas até onde sei, o método da compensação é baseado em
oferecer alguma recompensa a cada conduta correta.

Isso sem contar os problemas com a bebida. Não que eu seja um bêbado inveterado, pois bebo moderadamente o suficiente para detectar que tenho um problema. Sempre digo para mim mesmo "você precisa parar de beber tanto, chega!", mas me escuto? Não, como sempre. Ou melhor, bebo sempre. Enfim, o tal problema trata-se do incrível paradoxo de quanto mais você bebe, menos bêbado você fica. Criar resistência é mesmo um mal inevitável e que exige medidas drásticas, como cortar o álcoól da dieta. Colocando o dilema em termos mais profundos, é como ter um objetivo e, quanto mais você luta para atingí-lo, mais você se distancia dele. Impressionante como até ficar bêbado era mais prazeroso na infância.

Como posso me tornar um sujeito legal se é esse o exemplo que dou para mim?

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Verde

- De que cor são?
- verde.
- Ah.
- não sei por que a pergunta. Por que um cego ia se interessar pela cor de alguma coisa? pior ainda, pela cor de um olho, logo um olho!
- Mas eu sei o que é um olho. Só porque sou cego não quer dizer que eu não saiba. Um paralítico sabe o que é uma perna, não sabe?
- tá, pode até ser, mas verde você não sabe o que é.
- Claro que sei. Eu sou cego, não daltônico.
- nem convincente.
- Essas balas de maçã que você está comendo agora, por exemplo.
- o que têm elas?
- Não são de maçã vermelha.
- como você sabe?
- Pelo gosto. Lembra que eu te pedi uma?
- lembro.
- Pois é, tinha gosto de verde.
- e desde quando cor tem gosto?
- Desde sempre. Você não comeria um bife azul, comeria?
- eu não!
- Nem eu, deve ser um horror. E o cheiro deve ser insuportável também.
- como é cheiro de azul?
- É.. ham.. azul! E o verde? Você já viu, não é? Como ele é?
- é.. ham.. verde..
- Você não sabe explicar?
- você sabe?

sábado, 12 de julho de 2008

Sobre sofás e ampulhetas

Ele arrancou com os dentes a pele que insistia em ficar pendurada ao lado das unhas roídas. No sofá em que acabara de sentar, um buraco no lugar ao seu lado indicava que alguém levantara dali havia pouco tempo. Perguntou à recepcionista o quanto ia demorar. Precisou fazê-lo duas vezes para desviar sua atenção da televisão, que falava algo sobre declaração de impostos.

A recepcionista vestia um uniforme todo azul-claro com a parte inferior da saia um pouco amassada, talvez de tanto limpar nela a lente de seus exagerados óculos que embaçavam constantemente por causa do ar-condicionado muito próximo. Pouquinho, ela disse como quem não quer incomodar a televisão. Vai demorar só mais um pouquinho.

Mentira, ele pensou. O buraco ainda fundo e quente ao lado provava isso. Tinha o costume de atribuir aos sofás de sala de espera a função de ampulhetas. No momento em que o lugar desocupado ficasse liso novamente e, o seu, suficientemente fundo e quente, seria como se a areia passasse para o seu lado do sofá e ele seria finalmente chamado. Como acreditar naquelas lentes embaçadas se a mobília dizia exatamente o contrário? Não é à toa que pessoas como eu são conhecidas como "pacientes", ele pensou.

No momento em que levantou para ir até o balcão enfrentar a recepcionista munido de sua teoria sobre sofás e ampulhetas, o paciente ouviu um barulho vindo da porta. Alguém a puxou antes de perceber que deveria empurrá-la. Após superar as adversidades do puxa-empurra comum em consultórios e portarias de prédios, um homem esquelético ganhava a sala de espera e vice-versa. Seus passos lentos o conduziam até o sofá, para o qual o paciente voltava a passos bem mais velozes e temerosos em perder a profundidade conquistada na almofada ao longo da última meia hora.

De nada adiantou. O esquelético sentou ali mesmo. Meteu sua mão enrugada no bolso direito das calças e dele tirou uma carteira de dinheiro, outra de cigarros, um isqueiro e alguns papéis amassados que pôs junto às revistas dispostas no criado mudo ao lado. Após fazê-lo, respirou alto como quem pensa alto que está cansado e impaciente.

O paciente, ainda de pé e irritado com a secretária mentirosa e o esquelético impaciente, procurou disfarçar sua frustração fingindo se aproximar da televisão para ouvir melhor. Estava bem no meio dos comerciais, mas não lhe ocorreu idéia melhor do que puxar a porta e ir embora, o que seria o mesmo que se dar por vencido. Além disso, percebeu ter uma vantagem sobre seu oponente: pelo menos uns dez quilos a mais.

Confiante, voltou para o sofá e sentou com força na almofada ao lado do impaciente, que mesmo impulsionado repentinamente para cima permanecia impassível. Em poucos minutos, as almofadas já estavam com quase a mesma profundidade. Só mais um pouco, ele pensou recordando a mentira da recepcionista. O olhar embaçado agora se dirigia ao sofá e convidava o impaciente esquelético a entrar na sala de consulta, chegando a referir-se a ele como 'preferencial'. Um traste trapaceiro, isso sim, praguejou o paciente enquanto se dava por vencido.