quinta-feira, 26 de maio de 2011

Irremediável

Ela é irremediavelmente linda. Seus cabelos se contorcem em espirais despenteando a brisa e assediando minha imaginação. Uma alegria preguiçosa habitando a correnteza entre nossos lábios, um sussurro devorando disfarces desbotados. Gosto de deixar suas cores pintarem minha sombra. Gosto dela.

Distraída, deixa escapar pensamentos como se fossem bolhas de sabão e se molha sempre que resolve estourar alguma. Elas ganham o ar reluzentes e caóticas, algumas me molham também, outras molham as paredes, o colchão, os livros. Seu pensamento escorre por toda a sala inundando o tempo até ele se afogar e não passar mais. Ela pragueja, eu acho graça.

A beleza que toca meus olhos se esconde nos dela, fragmentos de eternidade inacabada salivando lágrimas e bolhas de sabão. Morávamos juntos no labirinto mais bonito da rua, mas nunca nos encontrávamos. Podia sentir seu perfume me invadir e seu gosto me deixar. Podia ouvir seus passos, que enfim vêm de encontro aos meus agora.

Deixa o tempo agonizar mais um pouco. Nem sei se moro numa dessas bolhas, mas sei que amar também é sentir cócegas no coração.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Garrancho

As palavras não existem. São só onomatopeias do que existe de verdade. Fora do papel fino, o vento carrega pólen e move fios de cabelo que doem quando são arrancados, que molham na água, que pinicam os olhos. O resto é só garrancho delinquente de tinta e pixels. Nomes devorando cardápios, conceitos engrossando livros e manchetes empilhando jornais. Mas não me chamem de pessimista. Apenas não me chamem de nada. Mas me chamem mesmo assim. Não direi obrigado, mas ficarei agradecido.

Quero que me leiam como ouço seus aplausos. Se não aprecio uma palma de cada vez, por que desfilo palavras vaidosas, uma após outra corroendo o papel e o ar? Que me leiam como ouço suas vaias. Quisera eu ser tão direto e desafiador quanto a garganta que insulta sem xingar. Uma poesia que dói, molha e pinica sem garranchos ferindo o silêncio, sem onomatopeias do real manchando a página limpa.

E você, que está aí no futuro me lendo agora, não se deixe enganar: saiba que nunca previ que estaria aí. Apenas congelei um blefe para impressionar sua leitura com falsos dotes psíquicos quando este compêndio de inexistências chegasse aos seus sentidos coincidindo masturbações estéticas. Ah, as artimanhas da palavra grafada... Mas sou capaz de trazer a pessoa amada. Sim, sou. Desde que essa pessoa seja uma das quatro que me habitam.

Aqui, elas ensaiam para encenar uma temporada eterna da despeça que escrevi, despeça composta apenas pelo primeiro desato, no qual sempre esquecem as falas:

Um: O que vai acelerar nosso sangue hoje?
Dois: A prece que passa apressada lavando pecados impecáveis e tocando trovas intocáveis!
Três: Hã?

Dois: Nada, é só um sentimento que inventei.
Três: Vim te mostrar uma cor que inventei.
Um: Também sou inventor. Inventei um sentido.

Três: Como é seu sentido?
Um: Como é sua cor?
Dois: Como é seu sentimento?

Um:
Dois:
Três:

Seis: E o fim? O fim é outra dessas palavras que não existem. Não à toa, outra fala que todos esquecemos nas nossas deixas. E deixamos nossos papeis do mesmo modo como os assumimos, nenhuma palavra. Nenhuma.